Engana-se quem pensa que o carnaval é uma manifestação social e cultural única. Já que atualmente os olhares sobre a cultura brasileira têm enfocado e privilegiado a importância da diversidade, é preciso também reconhecer o carnaval como uma manifestação múltipla, repleta de regionalismos e representações, frutos das heranças culturais e étnicas presentes na nossa formação.

 

 

 

 

 

Consagrado como o maior espetáculo de massa, conhecido nacional e internacionalmente, o carnaval possibilita a articulação de diferentes significações de acordo com o contexto onde se realiza. Esse ritual festivo que mobiliza grande parte da população e envolve recursos financeiros significativos, geradores de uma economia própria, é um fenômeno social e cultural que apresenta o Brasil ao mundo como um país de grande criatividade, de personagens únicos e de confraternização de sonhos e fantasias.

 

 

 

 

 

O significado do carnaval foi ampliado no Brasil e a festa assumiu uma dimensão maior do que aquela associada às datas religiosas, quando antecedia o início da quaresma no calendário judaico-cristão. O Brasil, incorpora em seu calendário festas ao longo de todo o ano, com manifestações que podem incorporar no seu repertório figuras folclóricas, tradições indígenas e africanas, que expressam os regionalismos ou servem de preparação para os festejos oficiais.

O carnaval é uma das maiores festas populares do planeta, é uma explosão de cores, de geração de músicas, ritmos, danças e brincadeiras, que se manifestam de inúmeras maneiras pelo Brasil adentro. Esses rituais carnavalescos são diferentes inclusive nas regiões onde acontecem, pois revelam os conflitos e os simbolismos das diferentes camadas da população que deles tomam parte.

 

 

 

 

 

Nascido do entrudo português e dos lundus, os carnavais de rua são na essência populares, catárticos e subversores, no sentido positivo da inversão de papéis, da ousadia criativa, da comunhão de corpos e sentidos, revelando-se um movimento coletivo de consagração da alegria e de saudação à multidão.

Captar pela fotografia a multiplicidade dessa manifestação, ao mesmo tempo individual e de massa, é um desafio à sua justa representação. Se há uma riqueza estética comum a todos os carnavais, com uma exuberância de cores, formas e texturas, há também em cada um seu aspecto diferenciador, que traduz no particular a sua originalidade. Esse mosaico de festas, folias e ritos carnavalescos funciona como uma janela para o conhecimento da diversidade cultural brasileira, através da qual as lentes do fotógrafo registram, ampliam, destacam e recriam seus personagens, seus cenários, suas emoções e energias, numa linguagem visual repleta de flagrantes e retratos, resultando numa plasticidade autêntica e única.

 

 

 

 

Carnaval « singular e plural » é um aglutinador de identidades e, por isso, só pode ser representado de maneira múltipla, numa composição que destaque a dialética existente entre unidade e pluralidade, fragmento e totalidade. Não há como fotografar esta aquarela pagã sem viver intensamente a liberdade que ela inspira

Para capturar as imagens presentes nessa exposição fotográfica, foi preciso percorrer o Brasil durante alguns anos, acompanhando os carnavais de maior destaque no cenário nacional, vividos intensamente em suas localidades: Rio de Janeiro, Recife e Olinda, Salvador, Amazonas e interior pernambucano.

O mais conhecido e divulgado internacionalmente é o carnaval do Rio de Janeiro. Nascido entre a população marginalizada, foi instituído oficialmente nos anos 30 e trouxe para a rua os blocos, o corso e os ranchos, com os foliões cantando e dançando as marchinhas mais populares e divulgando como gênero musical o samba. Com o tempo, o carnaval se sofisticou e profissionalizou, passando a ser um espetáculo planejado e apreciado pela exatidão dos seus rituais. O carnaval carioca é o carnaval das escolas de samba, com seus carros alegóricos que contam histórias com liberdade poética e com centenas de integrantes, ligados à comunidade de origem da escola. Desde os anos 80 seu palco é o Sambódromo, também conhecido como « passarela do samba », e nele que as escolas desfilam, exibindo luxo, fantasia e sensualidade, compondo um espetáculo que já foi comparado a uma ópera ao ar livre, de cunho popular.

 

 

 

 

Na mesma época, outro carnaval acontece no Nordeste brasileiro, nas cidades de Recife e Olinda. Aqui, é o frevo que comanda os passos e coreografias dos blocos de foliões que invadem as ladeiras e ruas estreitas do centro antigo. Nesses dias, mais de um milhão de pessoas ocupam a capital do frevo e o carnaval, aberto pelo « Galo da Madrugada », o maior bloco carnavalesco do mundo,  desenrola-se com a participação de centenas de agremiações, algumas antigas como o Bloco da Saudade, e só vai terminar na quarta-feira de cinzas, com o desfile de bonecos gigantes e banda do famoso bloco Bacalhau do Batata. É também aqui que se dá o encontro entre caboclinhos e maracatus (que na cidade é o maracatu-nação ou de baque virado), ambos manifestações regionais de forte influência cultural indígena e africana, respectivamente. Essas características fazem do carnaval pernambucano o mais democrático do país.

 

 

 

 

Salvador tem o carnaval mais longo do Brasil, e seu ritmo é comandado pelos trio-elétricos, comandados por bandas que puxam os blocos ao som de axé-music, batuques e Timbalada. Essa invenção deve-se à dupla de músicos Dodô e Osmar, que em 1950 equiparam um caminhão e colocaram seu som elétrico nas ruas da capital baiana. Com presença arcada da cultura africana, circulam também os afoxés, uma espécie de candomblé de rua, criado no final do século XIX, como Filhos de Gandhi, e os blocos afros, surgidos na década de 1970, como o Olodum. A apoteose acontece em torno da praça Castro Alves, com o encontro dos trios acompanhados de milhares de pessoas balançando  os braços, seguindo coreografias que se inovam a cada ano.

Bastante original é o carnaval amazonense, que tem como ponto principal a cidade de Parintins, às margens do rio Amazonas, na Ilha Tupinambarana. Divulgado como um carnaval local, ele é um grande festival folclórico, em homenagem ao boi-bumbá. Durante as festividades, a cidade e seus milhares de foliões dividem-se entre dois grupos concorrentes, os Caprichosos, representados pela cor azul, e os Garantidos, de cor vermelha. Na arena, conhecida como Bumbódromo, eles representam a história do bumba meu boi, recheada de lendas e mitos da região, e durante três dias mais de 10 mil brincantes dançam ao som das toadas e dos repiques das batucadas, durante três horas por noite. O ponto alto da festa é a morte do boi, ressuscitado depois, tudo acompanhado pela frenética multidão que torce e se entrega intensamente aos rituais carnavalescos.

No interior de Pernambuco, as festas de carnaval são regadas pelo som, danças, cores e personagens do maracatu de baque solto ou de orquestra, estilo próprio de cidades como Carpina, Nazaré da Mata, Aliança, Tracunhaém e Igaraçu, todas na Zona da Mata pernambucana, localizadas a menos de 100 km de Recife. Nessa região, que tem na cana-de-açúcar sua principal economia, a folia encenada tem como personagem principal o Caboclo de Lança, ricamente vestido com uma indumentária de gola bordada de lantejoulas acompanhada pelo surrão, espécie de bolsa adornada com chocalhos que produzem um barulho forte e primitivo durante a evolução dos caboclos, com saltos e malabarismos típicos.

 

 

 

 

A batida cadenciada do maracatu de baque solto é marcada pela orquestra que tem na sua formação instrumentos de sopro (clarinete, trompete ou trombone), surdo, tarol, cuíca, porca, mineiro e gonguê, tudo acompanhado pelo tirador de loa, desafios cantados em versos que evocam antigas cantigas. Diferente do maracatu urbano, onde a presença de reis e rainhas evoca as festas ligadas a coroação dos Reis do Congo, o maracatu rural é uma fusão de elementos de vários folguedos populares e de marcante influência africana, originária dos escravos dos antigos engenhos açucareiros, e os confrontos imaginários que acontecem durante os cortejos simbolizam as batalhas de tempos passados.