«Vida, poemas e canções»

 

A poesia não é forçosamente uma linguagem propícia ou destinada à comunicação. O próprio desta forma de expressão é poder existir sem explicações : não importa sequer o sentido do que é lido. Um poema marca-nos quando cria em nós, de forma inexplicável, um estado semelhante àquele do autor. Extraordinário poder, o da poesia. Um discurso pode repetir-se em outros termos. Um poema, no que ele tem de mais estranhamente incisivo, pode desaparecer se uma palavra, um som, um ritmo forem alterados. Não se sabe como. Um poema renasce dele mesmo, dizia Paul Valéry. Pode aprender-se de cor. Pode repetir-se indefinidamente. Como uma dança, uma canção.

 

A poesia nasce de um vazio. Um vazio de palavras, um silêncio, uma perda. Ela exige uma procura carnal, subterrânea, no/do próprio ser. Só assim haverá transmutação do mutismo em ato libertador.

Não há poesia sem subversão, sem violência. E é nesta tensão que se inscreve a vida.

 

Que melhor título poderia pois escolher Celson Lima para o seu primeiro livro ?

 

 

 

 

« Vida, poemas e canções », publicado para os 51 anos do autor, contém poemas que atravessaram a vida, respira a vida que emergiu no poema. E sempre, na alegria como no desespero, aquela musicalidade própria do fecundo compositor de pautas e notas que já conhecemos…

 

Se o retorno de Celson às raízes santarenas se revela âncora necessária, os temas escolhidos englobam o mundo. O nosso caminhante, quantas vezes « só » na multidão surda, não escapa à lei da pele… Uma pele que é a de um homem em luta com seus poros : poros não impermeáveis à dúvida, à desilusão, ao amor, à paixão visceral… poros que se esforçam por proteger o segredo de que a escrita se apropria…

 

 

« Sou do teu dia, nenhuma hora
Sou do teu minuto, nenhum segundo
Sou do teu amor, apenas a memória
Que pena e cala, profundo »

Extrato do poema « De Passagem »

 

 

« O urso de pelúcia chora
Por mim, por ti e pela criança
Ele não anuncia bonança
Ele apenas implora
Que a vida valha o mesmo
Na África, na Palestina
Na Síria, em Paris ou na China
Em Santarém, no Rio ou em Sarajevo
[Afinal, a dor da perda, é universalmente igual …] »

 Extrato do poema « O Urso de Pelúcia »

 

 

« O amor não deve ter medo : ponto.
[…]
O amor é a nossa pérola mais que querida
Gerada nos nossos ventres de ostra »

Extrato do poema « Destemido »

 

 

« Meu choro não escorre pela face plácida
Ele se derrama com calma
E a lágrima, ácida
Vai derretendo minh’alma »

Extrato do poema « (Des)Emoção »

 

 

Secreto, sim, o meu amigo. Mas a impulsão está dada : “A pena de mim não tem pena”… e o “louco desejo” exigirá sempre mais : “Não sei porque escrevo / Nem de onde vem o poema”. Avançando e recuando, naquilo que antes de mais é uma descoberta de si próprio (« Perigo disfarçado no olhar chegou [1] »), Celson escreve o que sente… e o que pressente… Pois é precisamente entre a vontade de dizer e a vontade de calar que a tensão criadora se vai instalar.

 

 

« O desejo, que sempre foi muito
Já transbordou corpo afora, faz tempo
Muitas palavras, tantas cenas invento
Loucura, louco, eu, tu, tudo junto !

 A vida seguirá seu rumo
Abraço, saudade, louco, loucura
Sonho e desejo no afã da procura
Doença sem cura, o veneno é mais forte ! »

 Extrato do poema « Pro louco »

 

 

Uma parte de silêncio e de mistério, que nenhuma ciência elucida, é assim necessária ao escritor. Pouco importa negá-lo : « A olho nu, peito nu, corpo nu / O poema expõe tudo, sem rodeio ». Sim e não : porque o poema é « imprevisível »… « meio que calado [2] »… e as palavras são bem vezes « (des)palavras [3] ». O poeta não é, como cuida, senhor de seus versos.

Obrigado a dizer « tudo », mas aos poucos, sem a autoridade suposta sobre o seu « dizer », ele submete-se aos seus poemas como a uma dança sem fim, a uma « doença sem cura »… que paradoxalmente vai curando :

 

 

« A dor é necessária
Desfazer, descer, ir ao fundo
Recomeçar, subir, respirar novo ar
Descobrir o atalho para o novo mundo
Cantar a ópera inédita, mágica ária
E dançar, dançar, dançar
Até o corpo pedir trégua »

Extrato de « Já Passou da Hora »

 

 

Garantida, por processos que escapam ao consciente do poeta, a continuação da escrita, como busca da palavra inteira, aquela de menino, a solidão do escritor afasta-se, a « morte » também… A viagem « num quarto escuro » poderá então ser sublimada : « Amanheci e guardei / Tudo no porta-retratos ! / Retratei o amanhã… [4]»

 

Sim, Celson, tu fazes Arte ! Tua parte não « está desfeita », nem « partida em mil cacos [5] »… Ela soa verdadeira, imagem de ti próprio. « Pode ser ? Pode, ser ! »

Obrigada pela beleza de teus versos !

 

 

 

 

 

 

 

 

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[1] Verso do poema « Soneto libertário »

[2] Versos de « Vida de poema ».

[3] Título de um poema do livro : « (Des)Palavras ».

[4] « Retratei o sonho, / Sonhei o futuro, distante viagem / Viajei num quarto escuro / Escureci a poesia e a alegria, / Alegrei a tristeza e / entristeci o dia. / Amanheci e guardei / Tudo no porta-retratos !/ Retratei o amanhã… » : extrato do poema « Porta retratos ».

[5] « Não faço parte. / Minha arte a ninguém interessa / Corro, atropelo, morro, não há pressa / Não faço arte. / Minha parte já está desfeita / Partida em mil cacos / Geada às vésperas da colheita / Doença terçã, maleita… » : extrato do poema « Deprê ».

 

 

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